Escrevendo para ninguém ler: por que alguns artigos científicos não são lidos?

Aline Cardoso
4 min readOct 16, 2023

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A produção e publicação de artigos é uma prática essencial no mundo acadêmico, sendo uma atividade ininterrupta que despeja uma enorme quantidade de conhecimento no vasto oceano da pesquisa. Nesse cenário, muitos artigos acabam se tornando apenas peixes pequenos em uma corrente constante de informações.

Professores e alunos de pós graduação passam meses (até anos) pesquisando e escrevendo artigos científicos que serão submetidos para renomadas revistas científicas, mas que podem ou não ser aceitos e publicados por elas. No entanto, uma realidade persistente é que muitos desses artigos que recebem o sonhado aceite de uma revista, após publicados, acabam não sendo lidos ou recebem uma quantidade limitada de atenção por parte da comunidade acadêmica, passando praticamente despercebidos.

E eu chamo atenção para o fato de que essa questão se estende não apenas para a falta de divulgação para o público em geral, mas muitos artigos não são lidos ou divulgados mesmo na rodinha de especialistas e acadêmicos.

Para mim, isso acontecer por alguns motivos:

  1. Artigos acadêmicos são chatos de ler
    A linguagem acadêmica é reconhecida por sua monotonia e complexidade. Os autores utilizam uma linguagem densa, repleta de jargões e construções complexas de frases. Junte isso a pesquisas super especializadas e torne o artigo menos atrativo para um público amplo. Se já é difícil para um especialista ler o artigo de outro especialista, imagine para o público no geral?
  2. Acadêmicos são obrigados a publicar porque isso impacta na sua carreira
    A quantidade de artigos científicos publicados desempenha um papel crucial no progresso da carreira de um pesquisador. O número de publicações é usado como métrica para a avaliação do seu desempenho, influenciando promoções, financiamentos e oportunidades de emprego. Além disso, a publicação de um um artigo em um periódico de alto impacto pode trazer reconhecimento significativo ao pesquisador e influenciar na sua progressão de carreira. Um artigo publicado na revista Science indicou que alguns cientistas publicam mais de 70 artigos por ano. Essa produtividade excessiva pode resultar na escrita de artigos quase automaticamente, com foco na quantidade. A consequência é que muitos desses artigos são monótonos e carecem de um esforço genuíno para tornar a leitura mais envolvente. Além disso, a quantidade esmagadora de artigos acadêmicos publicados regularmente faz com que haja uma sobrecarga de informações levando à seleção de um número limitado de artigos que o leitor vai escolher pagar para ler… falando em pagar…
  3. Acesso restrito
    A maioria dos artigos acadêmicos encontra-se por trás de paywalls em revistas especializadas ou requer assinaturas de instituições de ensino e pesquisa. Esse modelo de acesso limita a difusão do conhecimento e impede que o público em geral tenha acesso aos artigos, tornando-os inacessíveis a pesquisadores e estudantes que não estejam afiliados a instituições com recursos para pagar por essas assinaturas. Além disso, os periódicos cobram taxas elevadas para que os leitores tenham acesso a um único artigo. Isso cria uma grande barreira para pesquisadores, estudantes e curiosos que vivem em países em desenvolvimento, e que não têm o privilégio de ganhar em moedas estrangeiras como o dólar, euro ou libra.

O que podemos aprender com artigos sobre IA?

À medida que a inteligência artificial (IA) se torna cada vez mais mainstream, uma boa parte dos artigos que exploram IA estão conquistando maior visibilidade e acessibilidade. Com isso, pesquisadores da área tem feito um esforço e cedido espaço para tornar uma linguagem extremamente técnica em uma comunicação mais amigável e transparente.

Além da divulgação científica e da disseminação de artigos científicos, é preciso que os próprios autores se conscientizem sobre a necessidade de clareza na escrita, simplificação da linguagem técnica e criação de resumos eficazes. À medida que refletimos sobre por que alguns artigos científicos permanecem na obscuridade, podemos encontrar inspiração em buscar maneiras de tornar a ciência mais acessível e significativa, não apenas para os próprios acadêmicos, mas para a sociedade como um todo.

Afinal, era para ser de interesse dos próprios autores que sua pesquisa seja lida. Escrever pensando em quantidade e não em qualidade é, de fato, escrever para ninguém ler. Se uma árvore tomba na floresta e não tem ninguém para ouvir ou ver seu tombo, a árvore tombou? Da mesma forma, se um artigo for publicado no meio de tantos outros em periódicos que cobram uma fortuna para que o leitor consiga acessá-lo, o artigo realmente existe? O que vale mais, conhecimento científico disseminado ou um artigo invisível publicado?

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Aline Cardoso

Estudando o comportamento humano e tentando entender o meu; (ela/dela); Doutoranda em Fisiologia — Neurociência (UFRJ); Brasil