Não é sobre chegar em algum lugar, é sobre se manter indo

Aline Cardoso
4 min readDec 15, 2022

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Antes de você começar a ler esse texto gostaria que você pensasse no seu primeiro dia de treino. Você consegue se lembrar? Quantos anos você tinha? O que estava vestindo? Fazia calor, frio chuva? O que você estava sentindo? Agora quero que você se lembre do seu último treino? Faz muito tempo? No que você estava pensando? O que você estava sentindo? Muita coisa mudou do seu primeiro para o seu último treino?

Quando me matriculei na Kizame (academia de artes marciais) não sabia absolutamente nada sobre Savate, e uma das primeiras coisas que aprendi foi que o Savate é uma “luta de malandro”. Malandro, “aquele que lança mão de recursos engenhosos, frequetemente condenáveis, para viver”. Quando ouvi isso pela primeira vez imediatamente pensei que o Savate era uma arte marcial cujo objetivo era vencer a qualquer custo. Ganhar do meu adversário mesmo que para isso tivesse que lançar a mão de recursos engenhosos, frequetemente condenáveis. Bom, como uma estreante no mundo das artes marciais, essa informação foi processada com muita atenção e desespero. Isso significava não saber o que esperar dos treinos. Todos ali automaticamente se tornaram meus adversários. Mais do que treinar para melhorar a cada dia, eu deveria treinar para ser melhor do que meus colegas de turma. Não pela inveja, mas pelo medo da derrotada. Pelo medo de passar vergonha na frente todos, de não ser levada a sério. A ansiedade e a insegurança fizeram parte da minha primeira semana de aula. Todos os dias eu duvidava da minha própria capacidade e pensava em desistir. Era como se a empolgação de começar algo novo que eu senti no dia em que fiz a matrícula tivesse sido substituída pelo medo de errar.

“Eu ganhei uma paz enorme quando eu falei ‘eu não quero vencer na vida, eu quero viver’. Essa ideia de vencer na vida é um inferno. Coloca meus irmãos como meus adversários, meus inimigos. Eu não quero ser melhor do que ninguém. Se eu for do que você numa coisa, você vai ser melhor do que eu em outra. “ Eduardo Marinho

A verdade é que se preocupar em ser o melhor de todos logo de começo faz com que qualquer atividade prazerosa se torne um peso, porque quem de fato ganha alguma coisa é quem se esforça para se fazer presente. A ideia de ser o melhor, de vencer, ou ser o numero 1 coloca a felicidade lá na frente como se fosse a última coisa a acontecer, como se você não pudesse ser feliz ou se divertir no caminho. Vivemos numa sociedade onde todos os dias somos confrontados com a ideia de que o objetivo da nossa existência como ser humano é o de vencer o jogo da vida. Como se a vida fosse um jogo com regras muito bem estabelecidas, com um objetivo final, com perdedores e vencedores. E isso reflete em tudo o que fazemos no nosso dia a dia. Reflete na nossa profissão, na vida pessoal, nos nossos hobbies, etc. Mesmo que não haja de fato ganhadores ou perderes, nem notas de 0 a 10 para serem distribuídas, nem ao menos um ranking, a vontade de vencer nos persegue, e nos transforma em pessoas que passam a maior parte do tempo nos comparando com outros ou com nós mesmos. Isso porque não basta ser melhor do que quem está do teu lado, você também tem que ser melhor do que você foi ontem, ou seja, seu crescimento tem que ser exponencial.

Quando recebi o convite para escrever um texto para revista mensal da Kizame lembro de ter pensado que esse tinha que ser o melhor texto que já escrevi. Até então eu não sabia nem sobre que iria escrever, a única certeza era de que tinha que ser o melhor e não aceitaria menos que isso. Daí em diante, por mais que uma infinidade de temas para o texto passassem pela minha cabeça, sempre que sentava na frente do computador para escrever, meus dedos endureciam e a tela permanecia em branco. Demorou alguns dias e algumas leituras até eu entender que a vida não é um jogo com ganhadores e perdedores, mas sim um jogo que pode mudar a qualquer momento, cujo o objetivo não é vencer, mas sim permanecer nele. Ou seja, o importante é se manter indo.

“Você tem muita ansiedade de chegar em algum lugar. Até o dia que você percebe que não tem que chegar em lugar nenhum. Você tem que se manter indo.” Eduardo Marinho

Existe uma segunda definição da palavra malandro e que considero melhor representar o malandro savateca “aquele que leva a vida na malandragem, em diversões, prazeres”. Não é sobre vencer seu adversário a qualquer custo, mas sim sobre ser técnico e preciso o suficiente para ter tempo e espaço para desfrutar da alegrias e dos prazeres de uma boa luta. É parar de ver seus colegas como adversários, e passar a vê-los como irmãos e irmãs que desfrutam das mesmas canelas roxas, costelas trincadas e ombros doloridos. É comemorar e sorrir quando o outro acerta uma bom golpe — mesmo que esse bom golpe tenha sido executada pelo pé do seu amigo acertando o seu lindo rosto num chute rotatório muito louco. É se esforçar para estar ali mesmo em dias em que a rua alaga ou depois de passar 3h parado no trânsito.

No meu primeiro dia de treino eu tinha 24 anos, estava vestindo roupas de academia, fazia calor e eu me sentia muito ansiosa. Faz alguns dias que treinei pela última vez, estava me sentindo cansada e feliz, mas não me lembro no que estava pensando, e sim, muita coisa mudou de lá pra cá. Uma das principais mudanças tem a ver com autoconhecimento, pois agora sei que faço parte de um grupo seleto de pessoas que apanham com sorriso no rosto.

Texto publicado na edição de dezembro da revista mensal da Kizame.

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Aline Cardoso

Estudando o comportamento humano e tentando entender o meu; (ela/dela); Doutoranda em Fisiologia — Neurociência (UFRJ); Brasil